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segunda-feira, 12 de julho de 2010


Mapas do DNA ativo do parasita abrem caminhos para a criação de vacinas e para resister a resistência do verme a medicamentos

No futuro próximo, a integração das análises em larga escala permitirão entender melhor o parasita e elaborar novas estratégias para um tratamento mais eficiente

A doença é pelo menos tão antiga quanto os faraós que afetava, mas seus efeitos teimam em atormentar a humanidade de hoje. Cerca de 200 milhões de pessoas sofrem atualmente com os vermes do gênero Schistosoma, que pode agir de forma devastadora sobre o sistema digestivo e urinário e até levar à morte. Contudo, o próprio mundo em desenvolvimento que sofre os efeitos mais sérios da esquistossomose está iniciando um contra-ataque, com a ajuda das técnicas mais modernas de análise genética. Cientistas brasileiros e chineses obtiveram um retrato abrangente dos genes ativos em duas espécies de esquistossomo, o S. mansoni e o S. japonicum.

Com os dados sobre o DNA dos dois vermes (que afetam respectivamente a América Latina e a Ásia, além de algumas regiões da África, no caso do S. mansoni), deve ser possível obter informações cruciais sobre como os esquistossomos interagem com o organismo de seus hospedeiros em nível molecular. Os mecanismos usados pelo verme para escapar da vigilância do sistema imune e para se aproveitar do metabolismo humano poderão ser dirigidos contra ele, permitindo o desenvolvimento de novos medicamentos e vacinas - trabalho que já está sendo feito pela equipe que investigou seus genes.

A esquistossomose é hoje um dos maiores problemas de saúde pública em vários países tropicais. A doença é endêmica em 74 países em desenvolvimento e estima-se que cerca de 600 milhões de pessoas vivam em áreas expostas ao parasita. Tamanha população sob risco vive em países com saneamento básico insatisfatório, o que facilita a transmissão do parasita (pelas fezes e pela urina dos doentes, que acabam contaminando lagos e lagoas). No Brasil, o único causador da moléstia é o Schistosoma mansoni. A transmissão é mais comum no Nordeste e no norte de Minas Gerais, mas todos os estados têm áreas afetadas.
Existe um medicamento efetivo contra o verme, chamado praziquantel. Supõe-se que ele aja sobre um canal existente nas células da superfície do parasita, gerando um descontrole no fluxo de íons (átomos eletricamente carregados) para dentro e para fora delas. Os canais de íons são fundamentais para o funcionamento do sistema nervoso e outras funções, e sem eles o esquistossomo acaba morrendo. Já foram realizados tratamentos em massa com o praziquantel nas populações afetadas em países como Egito e Senegal. O problema, contudo, é que o remédio elimina os parasitas da pessoa tratada, mas não impede que ela seja reinfectada por outros vermes quando volta a se expor em águas contaminadas. Além disso, há indícios de que estão surgindo linhagens de esquistossomos resistentes ao medicamento nessas áreas. Por isso é importante descobrir uma vacina: ela daria proteção permanente e seria a maneira mais eficiente de romper o ciclo de infecção.

Em termos de complexidade, o ciclo de vida do S. mansoni não fica atrás do que se observa em insetos e anfíbios. O parasita passa parte de sua existência na água doce e ocupa dois hospedeiros: o caramujo do gênero Biomphalaria e o homem. Uma vez no organismo humano, os vermes se instalam primeiro nas veias do pulmão e, mais tarde, as que alimentam o fígado. A fêmea adulta (com 2 cm de comprimento e 2 mm de espessura) é delgada e mais comprida que o macho, que a abriga num canal de seu ventre. Eles se fixam nas paredes dos vasos sangüíneos por meio de ventosas.

Acasalamento no Intestino

Quando se acasalam, os vermes vão para as veias do intestino, onde a fêmea pode produzir até 3 mil ovos por dia. São esses ovos que acabam sendo eliminados pelas fezes, geram larvas que se abrigam temporariamente nos caramujos e, na forma de cercárias, penetram na pele de quem se banha em água contaminada, fechando o ciclo. O parasita pode viver mais de uma década dentro do organismo humano, provavelmente porque é mestre em iludir as defesas do sistema imune. Parece que o esquistossomo consegue interferir na sinalização das células de defesa, com a ajuda de substâncias que alteram seu padrão de resposta ou mesmo induzem à morte programada de algumas delas. Esses mecanismos ainda são muito pouco compreendidos, e elucidá-los representa um passo importante para combater o verme.

À primeira vista, mapear quais proteínas participam das várias fases da vida do parasita seria o jeito ideal de começar a desvendar sua interação com os hospedeiros. Essas moléculas estão entre os principais componentes celulares, envolvidos em quase todos os processos biológicos, mas obter informações em larga escala diretamente delas tem se mostrado muito difícil por razões técnicas. Um dos atalhos para contornar essa dificuldade é se concentrar no RNA mensageiro, ou mRNA. Essa molécula faz a ponte entre a informação contida no DNA, que contém as instruções para a fabricação de qualquer proteína, e as máquinas celulares que produzem as proteínas.
Cada molécula de mRNA vem de uma parte específica do genoma e contém a informação para a produção de uma proteína. O mRNA carrega essa informação para estruturas celulares chamadas ribossomos, os quais, a partir dela, começam a montar a cadeia protéica. É possível deduzir as proteínas produzidas em uma célula a partir da obtenção das seqüências de bases ou "letras" químicas (A, T, C e G) das moléculas de mRNA que a célula esteja produzindo. É claro que essa informação também poderia ser deduzida diretamente do DNA, mas o seqüenciamento do mRNA tem uma vantagem: essa molécula sempre contém mensagens que codificam proteínas, enquanto o DNA é composto, em sua maioria, pelo chamado "DNA-lixo", seqüências que não correspondem a proteínas.

É por isso que inúmeros esforços têm sido feitos pela comunidade científica para estudar o mRNA do Schistosoma. Entre eles, destaca-se uma iniciativa brasileira, o "Projeto Genoma de EST do Schistosoma mansoni", realizado por nossa equipe no estado de São Paulo. Esse projeto produziu aproximadamente 160 mil ESTs (Expressed Sequence Tags, ou Etiquetas de Seqüências Transcritas, em inglês), que são seqüências curtas de fragmentos de mRNA. A obtenção de ESTs é interessante porque seqüenciar totalmente as mensagens de RNA é um trabalho muito complexo, ao passo que obter apenas fragmentos curtos é bem mais fácil. Além do mais, a informação contida neles já é suficiente para deduzir a proteína que é codificada por aquela mensagem de RNA. Posteriormente essas mensagens se tornam públicas, e os cientistas poderão utilizar essa informação para obter a mensagem completa de algum RNA de interesse, por meio de experimentos adicionais, e produzir a proteína codificada por ele para a realização de novos experimentos.

A análise dos fragmentos de seqüências provenientes do mesmo gene nos permitiu concluir que o Schistosoma mansoni deve ter aproximadamente 14 mil genes. O número é comparável ao de outros organismos invertebrados de complexidade parecida, tais como a mosca-das-frutas Drosophila melanogaster, que já teve todo o seu genoma "soletrado" e possui 13,7 mil genes, ou a ascídia Ciona intestinalis, membro marinho e primitivo do grupo dos cordados (que inclui os vertebrados, como o homem), com 15,8 mil genes. Ao mesmo tempo, a estimativa não chega perto dos 31 mil genes que aparentemente compõem o genoma humano. Entre os 14 mil genes do S. mansoni, estima-se que 7 mil estejam ativos na fase adulta, quando ele habita o organismo humano. Nosso trabalho também obteve seqüências ativas nas outras cinco fases do ciclo de vida do verme.

Para obter ESTs, nosso projeto utilizou uma técnica diferente dos demais estudos com esquistossomos, chamada Orestes. Desenvolvida no Brasil, uma de suas características é obter preferencialmente seqüências da região central da molécula de RNA. A vantagem desse procedimento é que, nas moléculas de RNA, a região que contém informações para a produção de proteínas é justamente a central, e torna-se possível deduzir mais facilmente quais proteínas estão presentes no parasita.
As informações que obtivemos têm ajudado a entender diversos processos biológicos do verme, tais como o desenvolvimento, o duelo com o sistema imune do hospedeiro e a determinação das diferenças radicais entre machos e fêmeas. Encontramos novos receptores de neurotransmissores (os mensageiros químicos do sistema nervoso) e canais de íons. Esses achados são particularmente interessantes, já que esses receptores e canais são expostos na superfície das células do parasita. Eles provavelmente são proteínas bastante acessíveis e poderão ser alvo de novos medicamentos que possam interferir em seu funcionamento e causar a morte do esquistossomo. Foram encontrados também mRNAs codificadores de proteínas que podem conferir resistência a medicamentos. Essas proteínas funcionam como bombas, que retiram medicamentos de dentro da célula, o que pode interferir em possíveis tratamentos contra a esquistosomose.

Trabalho Chinês

Ao lado do projeto brasileiro, outro seqüenciamento em larga escala foi realizado na China, liderado pelo Centro Nacional Chinês do Genoma Humano, em Xangai. O objetivo era estudar o transcriptoma (o conjunto dos genes transcritos em mRNA) do Schistosoma japonicum, comum no Sudeste Asiático e no Pacífico Ocidental, que tem como hospedeiro intermediário caramujos do gênero Onchomelania. Esse projeto utilizou a abordagem tradicional para a obtenção de ESTs, que obtém preferencialmente seqüências das pontas das mensagens, e se restringiu ao estudo dos adultos (macho e fêmea, em separado) e ovos do parasita.

A partir das seqüências, foi possível tirar uma série de conclusões a respeito da biologia do Schistosoma japonicum, incluindo dados sobre possíveis mecanismos de interação do parasita com o hospedeiro humano e de genes com diferenças de ativação entre machos e fêmeas, possivelmente responsáveis pelas diferenças na fisiologia entre os sexos. Os dados obtidos por esse projeto foram publicados na mesma edição da prestigiosa revista científica Nature Genetics que divulgou os resultados do projeto brasileiro, permitindo uma comparação entre os dois programas. Também existem planos do Instituto Sanger, na Inglaterra, de gerar ESTs do Schistosoma hematobium, outro parasita aparentado que causa esquistossomose urinária e é encontrado na África e no Oriente Médio. Assim, será possível realizar estudos comparativos entre as três espécies de verme e entender as diferenças entre elas.

O trabalho brasileiro do ano passado aumentou em dez vezes a quantidade de informações sobre genes de Schistosoma, e permite agora que técnicas de genômica de larga escala sejam utilizadas para obter mais informações sobre a vida do parasita enquanto ele cresce e amadurece dentro do hospedeiro humano. As abordagens mais tradicionais se concentravam no estudo de apenas um gene ou proteína isoladamente, mas a genômica de larga escala permite estudar centenas ou milhares deles.
Esse tipo de abordagem gera resultados que permitem uma visão mais ampla do funcionamento do organismo, além de orientar uma escolha mais racional de alguns genes ou proteínas que estejam mais ativos em certa fase de sua vida, e que podem, então, ser estudados em mais detalhe pela abordagem tradicional. Um dos maiores passos para iniciar esse tipo de estudo foi o seqüenciamento do genoma humano, finalizado em 2001, que abriu as portas para o estudo de milhares de genes ao mesmo tempo em uma célula do Homo sapiens.

Novidades Biológicas

Atualmente, uma série de outros organismos estão tendo os seus genomas seqüenciados, o que tem gerado diversos resultados promissores. A genômica em larga escala de Schistosoma é particularmente interessante, pois se conhece muito pouco sobre os mecanismos moleculares que o parasita usa para se adaptar dentro da circulação do homem, dentro do molusco e em água doce. Além disso, nenhum organismo que seja parente próximo dele foi estudado exaustivamente. Portanto, pode-se esperar uma série de novidades em termos de mecanismos biológicos a partir do estudo desse verme.

Uma das principais técnicas genômicas em larga escala utilizadas é a de microarray, ou chip de DNA. Nessa técnica, colocamos uma das duas fitas de DNA de um determinado gene do parasita em um suporte de vidro. Em seguida, escolhe-se um parasita que se deseja estudar (um verme adulto macho, por exemplo) e retira-se todo o mRNA. As moléculas são marcadas com uma substância fluorescente colorida e colocadas no suporte de vidro que contém a fita de DNA do gene de interesse.

A fita do RNA marcado possui a propriedade de se ligar à fita complementar de DNA depositada no vidro. A quantidade de RNA marcado que vai se ligar à fita complementar que está no vidro depende de quanto o gene em questão está ativo no adulto macho. Assim, é possível detectar a presença e a quantidade do mRNA daquele gene na amostra de RNA total do parasita. Fazendo a deposição de milhares de trechos de DNA, cada qual em uma posição demarcada da lâmina de vidro, é possível realizar ao mesmo tempo a medida do grau de funcionamento (nível de expressão) de milhares de genes de Schistosoma em uma dada amostra de RNA.
Com isso, é possível estudar a variação das quantidades das mensagens de RNA do parasita ao longo de diversas situações de sua vida. Ao identificarmos os genes e as proteínas envolvidos no desenvolvimento do verme, selecionamos os alvos que posteriormente poderão ser objeto de um estudo mais detalhado. Essa técnica pode ser especialmente interessante para entender melhor os mecanismos de escape do parasita e os de interação com o sistema imunológico do hospedeiro humano.

Uma nova técnica promissora para o controle do funcionamento de um certo gene é a interferência de RNA (RNAi), que consiste em estimular o cancelamento de uma determinada mensagem de RNA no organismo vivo. É possível fazer isso por meio da introdução de um pequeno pedaço da fita contrária desse RNA, causando a formação de um trecho de RNA fita dupla (essa molécula, ao contrário do DNA, costuma aparecer como fita simples). O cancelamento ocorre porque o RNA fita dupla ativa um aparato de degradação de RNA, existente nas células para regulação dos níveis dessa molécula. Assim, colocando artificialmente dentro da célula uma grande quantidade extra de um pedaço curto da fita complementar, e aumentando assim a quantidade de RNA fita dupla, é possível disparar a sua degradação, desligando um gene específico do organismo. Com a degradação daquele RNA, não haverá mais produção de uma determinada proteína na célula, o que possibilita estudar o efeito da falta dessa proteína no organismo.

É possível também realizar testes em larga escala de candidatos a vacinas utilizando novas proteínas, cujos genes foram encontrados nos projetos de seqüenciamento de mRNA de Schistosoma. Esses genes podem ser colocados em bactérias, para que elas produzam uma cópia da proteína do parasita. Essa proteína é então isolada da bactéria, purificada e inoculada em cobaias. Posteriormente, as cobaias serão expostas ao Schistosoma vivo e quando se confirma se a vacina realmente ativou o sistema de defesa do organismo das cobaias. A partir disso, são selecionadas as vacinas que apresentarem resultados mais promissores, fazendo-se também um estudo mais detalhado da possível combinação de diversas proteínas.

Genômica de Larga Escala

Atualmente, laboratórios brasileiros estão utilizando a informação obtida no nosso projeto para a realização desses experimentos de genômica de larga escala. Entre eles podemos destacar estudos de microarray, para verificar a influência de sinais bioquímicos do hospedeiro humano sobre o desenvolvimento do Schistosoma mansoni, realizados por nosso grupo no Instituto de Química da Universidade de São Paulo. Para isso, estamos construindo um microarray em lâminas de vidro, onde estão sendo depositados cerca de 4 mil fragmentos de genes de Schistosoma, selecionados entre os 14 mil genes recentemente identificados. Além disso, testes em camundongos de vacinas de DNA contra a esquistossomose estão sendo realizados, usando como alvos cerca de 30 novos genes de Schistosoma recém-identificados, um projeto liderado por Luciana C. Leite, do Instituto Butantan. Também estão sendo planejados experimentos de localização de diversas proteínas nos tecidos e compartimentos celulares do parasita, utilizando anticorpos específicos contra as novas proteínas recém-identificadas, por um grupo da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto, liderado por Vanderlei Rodrigues.

Esperamos que, no futuro próximo, a integração das análises em larga escala, que estão sendo realizadas atualmente no Brasil e em diversos outros laboratórios pelo mundo, permitam entender melhor o parasita e elaborar novas estratégias para um tratamento mais eficiente. Desse modo, será possível diminuir a incidência de uma doença que afeta a população mais carente dos países em desenvolvimento.

por:Brandon Lee
Fonte:
Duetto Editorial

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